Os perus do Natal
Tipos populares portugueses: O homem dos perus Des. de Saavedra Machado |
No Álbum de Esmeralda Saavedra Machado
Não é preciso a
folhinha do Borda d'Água, nem espreitar, desfolhando, as pétalas do pequeno
bloco do calendário, que como as de uma rosa qualquer, de jardim cuidado e
mimoso, ou de sebe de caminho estriado, vão caindo e morrendo - dia a dia
caindo, no espaço lento dum ano para reconhecer as passadas do velho Natal que
se aproxima, que na época própria vem bater-nos à porta...
É este glu-glu
monótono dos perus que passeiam preguiçosamente pelas ruas de Lisboa que nos
anuncia o Natal.
Quando os perús
aparecem, quando o saloio, carapuço à banda, calça apertada nos canelos, os
traz daí dos arredores à ponta da sua vara, e o apregoa ao apetite dos
alfacinhas felizes - é porque o dia de Natal não anda longe!
Natal! Natal!...
E a gente a ouvir este
glu-glu monótono e tristonho lembra-se da nossa infância, dos natais da nossa
terra, que compreendíamos e amávamos melhor, porque então Jesus, pequenino e
aconchegado no seu bercinho pobre, era quási da nossa idade, era quási um
irmão...
Só a pureza da
infância pode compreender a alma doce do menino Jesus, humilde, pobrezinho, no
aconchego bento e morno duma arribana, que os Reis Magos visitam e os animais
mansos e bons aquecem com o seu bafo e iluminam com a ternura dos seus olhos...
E o pregão, longo e
nostálgico, do homem dos perus, acorda dentro do nosso coração uma doce
saudade, uma saudade velhinha, em que há ainda o sorriso duma criança, que era
quási da nossa idade, e que pela sua inocência, pela sua ternura, pela sua
idade humilde, era mais do que um amigo, era mais do que um irmão!...
Aí vem o Natal!...
Este glu-glu monótono,
arrastado, dos perus, não sei porquê, enche-nos o coração duma vaga, duma
grande e duma doce tristeza... Glu-glu... glu-glu... E tombam dentro do nosso
coração as notas magoadas desta nossa monótona cantilena, de versos mal medidos
e de rima tão pobre...
Glu-glu... Glu-glu...
Ó homem dos perus,
canta com mais alegria o teu pregão e com essa vara enxota o teu bando
nostálgico de maneira que ele não anda tão arrastadamente por essas ruas e não
gorgoleje com tanta nostalgia o seu glu... glu...
Dá-nos a ilusão de que
todos, na noite de Natal, os pobres e os doentes, tenham, como os ricos, também
o peru nas suas mesas.
Dezembro, de 1927
Rebelo de Bettencourt
Fonte: "Alma
Nova: Revista Ilustrada" - nº 5/4 (V Série) Março 1928