A Capucha da Serra do Caramulo

No Caramulo, a mais linda serra de Portugal, a cobertura tradicional dos habitantes é a capucha.

Espécie de manto de santa, caindo naturalmente até à altura do joelho, deixa bem a descoberto a testa e parte anterior do rosto, dando à mulher um tom de verdadeira madona.

E por lá aparecem algumas de formas tão esculturais e duma tal beleza de traços, que muitos as adorariam com mais carinho que às Santinhas que, sobre doiradas peanhas, destacam nos altares das capelas e igrejas.

Nunca a fértil imaginação de alfaiate e modista inventou peça de vestuário mais apropriada e útil.

Não é fácil precisar bem a sua origem, mas tudo leva a crer que viesse do Oriente, sendo trazida à região pelos árabes.

Se é que o modelo não foi extraído de alguma gravura, estampa ou desenho vindo dos Lugares Santos o que é muito natural, por quanto a capucha ainda hoje é precisamente o manto que, desde os princípios do Cristianismo, aparece cobrindo a maior parte das imagens, ou seja em pintura ou em escultura.

Apenas foi modificado o modelo adoptando-lhe no cimo, na parte que há-de assentar sobre a cabeça, uma semirodela de pano em forma de meia-lua.


É, ordinariamente, de burel de fabrico caseiro, havendo-as também, destinadas especialmente para os domingos e dias de festa, duma espécie de saragoça preta muito lustrosa, a que chamam briche.

Usa-se na serra do Caramulo, e em parte dos concelhos de Viseu, Vouzela, Vila Nova de Paiva, Moimenta da Beira, Castro Daire e em alguns pontos de Trás dos Montes.

Também se usa em alguns pontos dos Açores, mas aí um pouco modificada na parte que cobre a cabeça, que é em forma de capucho ou touca.

A sua utilidade é incomparável.

Se é preciso conduzir um carrego, duma das pontas faz-se a rodilha, rodoiça ou matula para à cabeça o levar, como de tecla ela faz a serrana boa e cómoda almofada que, ficando presa na cabeça, assenta entre os ombros, dando assim o melhor jeito para conduzir pesadas canastras ou enormes molhos de lenha, pastos ou outros fardos.


Vergadas como arcos de pipa, saia arregaçada quási até ao joelho, olhos pregados no chão, aí vão serra arriba, por ínvios caminhos, levando às costas enormes pesos.

Por esta forma levam os oleiros de Molelos a sua afamada e característica loiça preta aos confins do país e até à própria Espanha.

Do mesmo modo levam as serranas a Águeda e outros povos, a mais de 20 e 30 quilómetros, os afamados queijinhos do Caramulo.

Se precisam de levar cereais, hortaliças ou quaisquer outros objectos e não têm à mão em que melhor os possam conduzir, sem a tirar da cabeça fazem duma das pontas uma espécie de saca e com grande facilidade se arranja e leva uma grande arregaçada ou pontada, como por ali vulgarmente se diz.

Se precisam de agasalhar ou conduzir ao colo uma criança, deitando-a sobre uma das pontas, e passada a outra por baixo desta, levam as mães os filhinhos encostados ao coração, podendo levá-los, sopesadas da cabeça e ombros, enfardados e estendidos quási como se estivessem no berço.

Desta forma devia ter trazido a Virgem Mãe ao colo, envolto em seu manto, verdadeira capuchinha - o Deus-Menino.

E é tão cómodo e prático este modo de trazer e acalentar crianças que as mães, ou quem assim as leva, ficam com os movimentos livres para fazerem qualquer serviço, e até para conduzir qualquer coisa à cabeça, pois sabem aconchegar e enrolar os filhos de tal modo que podem fazer largos trajectos sem precisarem do auxílio das mãos e braços para os transportarem.


Serve também a capucha, enrolada ou torcida, ao comprido, para enfeixar coisas diversas, à maneira de corda ou atilho.

Estendida no chão, sobre ela secam milho, feijão e outros cereais, formando assim um pequeno toldo ou eirado.

Se é preciso estender a toalha, para as frugais refeições, em pleno campo, e não há perto laje ou relvado, a capucha estira-se sobre a terra, à guisa de mesa, evitando deste modo que a alva toalha vá sujar-se sobre a terra.

De dia é um excelente resguardo das chuvas, neve e granizo, de noite serve de manta na cama, e, assim, sempre um excelente agasalho para o frio.

Quando coberta deixa os movimentos soltos para certos trabalhos, e de inverno e de verão é a inseparável e melhor companheira dos pastores.

Óptima capa para os rigores do tempo aproveitam-na pelos dias de estio para sobre ela se deitarem e, muito especialmente, devidamente dobrada, para lhes servir de travesseira, quando sob copa dos arvoredos se livram do tórrido calor.

Numa das pontas levam por vezes, a merenda, como no Outono a aproveitam para conduzir os ouriços dos castanheiros que encontram pelos montados, indo cascabulhá-los à distância, para com as castanhas fazerem seus magustos.

E até pastores há que dela se têm servido para afugentar os lobos dos rebanhos, servindo-se da capucha como Guerrita, Montes ou Galito se servem da capa.

E gente que dela para tal efeito se tem aproveitado assegura que não há lobo que, em assim vendo caminhar para ele, com o improvisado trapo, como no redondel para o toiro, não fuja desabridamente, ou a sete pés, como por lá se diz.

Tem ainda a vantagem de se justar bem ao corpo e escoar a água como nenhum outro fato e de, sobretudo os homens, sobre ela poderem assentar o grosso e largo chapéu de feltro, para melhor poderem livrar a chuva da cara.

E por que se põe ou tira da cabeça num abrir e fechar d'olhos; por que encobre outras peças de vestuário que estejam rotas ou demasiado velhas, - é tudo quanto há de mais prático, por que é, também, como peça de indumentária, tudo quanto há de mais simples.

Serviria de apropriado modelo a Bocage se tivesse tido a felicidade de visitar o Caramulo, ou em qualquer parte houvesse lobrigado a linda e prática capuchinha, para saber o destino a dar aquele celebre corte de roupa que lhe ofertaram, e que ele enfiava na cabeça, à maneira de manta alentejana, fazendo-lhe uma abertura no meio, e usando-o assim até que chegasse a última moda ...



Viseu. Janeiro de 1909

José Júlio César

Fonte: "Terra Portuguesa - Revista Ilustrada de Arqueologia Artística e Etnografia" - nºos 31-32 - Janeiro de 1922

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