Cântaros de Coimbra... e uma tricana!
Tricana de CoimbraAguarela do sr. Alberto de Souza |
"Uma vez o
oleiro disse assim à mulher que embalava a pequena a cantar:
- Olha que acordas a criança. Vai ao rio
buscar água que eu tomo conta da pequena.
Era uma tarde
de outono, macia como a curva das colinas; e o oleiro tinha vindo trabalhar
para a porta do quintal, olhando o rio, os montes, as moças lavadeiras, sob as
folhas soltando um último suspiro.
Ficou-se assim
a dizer:
- Capaz de acordar a criança...
Quisera-a um
dia fazer em barro, a filha que Deus lhe deu.
Pôr-lhe uma
boquinha assim, uns dentinhos como os seus, e o cabelo loiro e fino todo eriçado
na testa...
Quisera-a um
dia fazer assim, levá-la ao forno, cozê-la, pô-la sobre o oratório, e beijá-la
a toda a hora, - tal como agora dormia, tal como agora sorria...
Voltam do rio
as lavadeiras; sob o bloco de barro informe, a roda gira.
O oleiro
esqueceu-se a cantar uma toada lenta, em que entra a melodia dos montes
fronteiros e o sossego do crepúsculo descendo.
No véu das
primeiras sombras, a paisagem é um brando corpo feminino adormecido com a reza
saudosíssima dos choupos.
Voltando do rio
com o cântaro à cabeça, a mulher do oleiro recorta uma curva de graça, que o
poente envolve, trespassando-a nas ansas leves dos braços apoiados sobre a
cinta.
O oleiro,
enquanto a roda gira, alarga a mão escultora no bloco de barro informe: e
reparou na mulher.
Gira a roda
mais veloz: e ele olha sempre a mulher, com o cântaro à cabeça...
Andam-lhe as
mãos ao acaso, sobre o barro, ligeirinhas, na mesma lenta, doce toada...
Mas ia a noite
descendo, quanto mais perto lhe estava agora a mulher; e mais o seu corpo
coleava um traço airoso e volátil...
E quando a
mulher chega mesmo à porta do quintal, erguendo alto nos braços o cântaro
acabado, e vendo que tinha em cima um cantarinho pequeno, como o que ela ali
trazia, mal soube dizer, contente:
- É o teu retrato, mulher!..."
(Do livro
"A Elegia da lena", recentemente publicado)
Dr. Veiga Simões
Fonte: "Ilustração Portuguesa", nº364, 10
de Fevereiro de 1913