Romaria do Senhor de Matosinhos em 1914
Sob as carvalheiras à hora da merenda |
Inquestionavelmente, é a terra de Entre-Douro e Minho a que oferece aos olhos estáticos do turista as mais lindas e variadas paisagens portuguesas, e que procria a gente mais divertida, mais foliona, mais alegre de todos o país.
Foi talvez observando os
usos e costumes das povoações do Norte que os franceses engendraram esse velho
e tão verdadeiro provérbio: «Les
portugais sont toujour gais».
Porque o Norte é a terra por excelência das romarias, das grandes festas semi-pagãs, em que a
superstição e a lenda se enlaçam com a crença e o culto, arrostando, em certas
épocas, povoações, vilas, cidades, províncias inteiras para os lugares quase
sagrados que a tradição consagrou e a religião floriu de rosas e de esperanças,
numa suave auréola de sonho.
Um aspeto do arraial da Romaria do Senhor de Matosinhos |
No Porto, principalmente,
é agora a época dos folguedos, das danças, dos descantes, uma onde de
esquecimento envolvendo todos os pesares e melancolias, uma alvorada clara
espairecendo o lado sombrio da vida, parecendo que a existência não é essa
coisa péssima que tantos detestam e de que muitos procuram libertar-se, mas
apenas uma interminável fiada de sorrisos, uma fonte inexausta de prazer.
Na Primavera, as romarias
sucedem-se ali com pequenos intervalos, todas elas atraindo concorrência
extraordinária.
Citando apenas as que ficam mais próximas da cidade, vem um
rosário enorme... a Senhora da Hora, o Senhor de Matosinhos, o Senhor da Pedra,
o S. Bento dos Peros, a Senhora do Pilar, Sant'Ana d'Oliveira e tantas outras.
E tem-se notado este ano que a afluência de forasteiros ultrapassa a dos anos
anteriores, bem que muitos afirmem que o povo anda sorumbático e triste,
preocupado com o seu futuro, como se ele fosse capaz de encarar a sério os seus
destinos!
Um dos pontos mais pitorescos do local onde se reúne o povo com os seus merendeiros |
O Senhor de Matosinhos que
há pouco se festejou, teve um brilho e uma grandiosidade que há muito não
atingia.
É preciso reconhecer,
contudo, que a ideia religiosa, embora em parte atenuada e esbatida, é ainda o
fulcro sobre que gira este redemoinhar de alegrias e entusiasmos populares.
Sobre o Senhor de
Matosinhos correm as mais variadas lendas, todas elas interessantes e poéticas.
No Minho, por exemplo, diz-se que um dia, enrolados nas vagas do mar, arribaram
à praia do Norte, no mesmo dia, embora em pontos diferentes, o Senhor de
Matosinhos, o Senhor de Fão, e o Senhor da Cruz, de Barcelos.
O primeiro
apareceu sem um braço, que uma mulherzinha do povo encontrou mais tarde, e que
aproveitou com outra lenha para aquecer o forno.
Mas o braço, gostando pouco do
calor, saltou fora da fornalha infernal, e deu-se o estranho caso de a fornalha
se apresentar laivada de sangue... O grande, o espantoso milagre!
No «parque». Um grupo de romeiros entre os quais se destaca os ilustre «sportman» Oliveira e Silva |
E diz ainda o povo que as
três imagens, que ele muito venera, são irmãs. Viera de alguma terra cristã,
que sabe de onde, que os infiéis devastaram, arrasando e incendiando as
igrejas, arremessando os santos ao mar.
E pelas estradas
poeirentas, polvilhadas do sol, nos adros largos que a relva atapeta e as
árvores ensombram, numa ronda sem fim, as moças do Minho ainda hoje cantam,
numa toada gritante e clara, ao som do harmónio, dos ferrinhos, do pandeiro e
da viola, aquela antiga quadra popular:
O Senhor de Matosinhos
Escreveu para o de Fão,
O de Fão p'ró de Barcelos,
Que de todos era irmão...
Barracas de comes e bebes |
In «Ilustração Portugueza».
15 de Junho de 1914 (texto adaptado à
grafia actual)