A Serra da Estrela no mês de Janeiro de 1911
Pastor da Serra da Estrela com o seu rebanho |
A serra, nesta época, está coberta de neve; é um lençol
orografado de que o sol tira reflexos estranhos ao chapejá-lo nas tardes.
Ao longe, os píncaros recortam-se, erguem-se como agulhas
finíssimas para o céu azul, cavam-se os barrocais em declives brancos, geladas
as lagoas, são extensões de uma alvura imaculada que fere a vista.
É enorme o silêncio nas altitudes; uma neblina densa envolve
as povoações do sopé da montanha e a neve tem efeitos maravilhosos nestes dias,
em que o pastor se recolhe, fugindo ao frio, com o seu gado.
Nas extensas geleiras, há reflexos azuis de aço temperado;
de quando em quando, ao menor raio de sol, surgem as cores iriadas, ressaltam
palhetas d'oiro num esplendor; alguns trechos parecem espelhos em cintilações
vivas, outros têm tons alaranjados, todos os cambiantes, todos os
deslumbramentos.
As árvores, com as suas camadas de neve, parecem dar frutos,
que são lindos pingentes de cristal, finíssimos, lembrando apurados trabalhos
de artistas cuidadosos e os caminhos desaparecem, atulham-se, são declives
escorregadios como superfícies de vidro.
Cascata da Candieira |
Barra-se de neve as portas dos casebres, dos cortelhos, dos
currais e, pelas noites, os lobos uivam na serra, de olhos cintilantes como
estrelas, acossados pelo frio, o pêlo eriçado, esfaimados, em busca de presas.
Atrai-os o povoado e descem pela neve, mal receando as batidas, mas especando
diante dos lumeiros que se acendem a afugentá-los.
Então, sós com a neve e com as estrelas do alto, uivam
ferozmente, em avisos de arrepiar.
Cá em baixo, nas aldeias, bem guardado o gado, bem fechadas
as portas, a gente das casas escuta-os sentada em torno da lareira, pensando na
imensidade da serra, nesse frio regelante, aconchegando-se mais nos mantões.
Chafariz de pastores no inverno |
É o inverno inclemente, que faz recordar mais as belezas da Estrela, pelos verões, quando os
excursionistas a sobem, por entre verduras, deliciando-se e descansando lá no
alto, diante do panorama soberbo que se desfruta, das aldeias e vilas vizinhas,
da linha espelhenta do Mondego, essa
maravilhosa paisagem que jamais esquece, toda afogada em luz, toda cintilante
de claridade.
Os lobos entram sempre nas histórias que se contam, ao calor
das lareiras; falam deles como de ogres horríveis, dizem como se envolvem em
bulhas sobre a neve, como seguem os homens pelas estradas, como têm devorado
crianças e ao evocarem-nos, diante dos seus uivos, melhor sabe estar ali, bem
defendidos e bem resguardados do frio, naquela terra da beira da serra.
Casa da Fraga bloqueada de neve |
Ao romper das manhãs, alguns mais ousados, vão vê-la como
ela agora está, branca, toda branca, na sua extensão, eriçada de picos, que
parecem tocar o céu, e, quando o sol nasce, julga-se que eles se acenderam como
fogachos nas mãos de gigantes, a quererem atingir a imensidade.
Depois, uma luz rosada derrama-se pelas cristas, cintila,
espalha-se, alaga tudo, e a serra, na sua neve alva, é como um grande fantasma,
que se toucasse de rosas, ao despontar duma madrugada.
Outra cascata |
A serra nevada |
Penhas Douradas |
O panorama da serra coberta de neve |
A lagoa escura gelada |
O Cântaro Magro |
Trechos da Lagoa Comprida |
Fonte: Ilustração Portuguesa, nº256, 16 de Janeiro de 1911 (texto editado e adaptado)