Cruzeiros e Alminhas no Gerês
Alminhas da Candorca (Rio Caldo) |
Cruzeiros
Entre as
afirmações da velha fé que embalou as mais remotas gerações e que ainda de onde
a onde se encontram para autenticar a veneração e o respeito com que se têm
conservado, deparam-se-nos em algumas freguesias da Serra os cruzeiros colocados
à sua entrada.
Estudo
interessante seria o que deles se fizesse, mas, à falta disso e apenas como subsídio
para futuro, que alguém possa servir, damos aqui a reprodução de dois cruzeiros
de freguesias do Gerês, para ambos os quais foram aproveitados marcos
miliários da via militar, que de Braga se dirigia, atravessando a Portela
do Homem, por Astorga a Roma, ambos do imperador Décio
(anos 249-251 da era cristã): são os cruzeiros de S. João do Campo
e de Covide.
O marco do Cruzeiro
do Campo, como é chamado, é um monolito cilíndrico de granito, possivelmente
erguido no primitivo local onde fora colocado, encimado por uma cruz com o
Cristo.
Está
resguardado por uma cobertura de madeira pintada e exteriormente revestida de
folha de zinco, cobertura que é sustentada por três colunas de granito.
A cruz e a
imagem são igualmente de pedra, de uma só pedra inteiriça.
Tem o marco a
seguinte inscrição:
IMP. CAES.
G. MISSO. TR.
DACONVTO
PIO. FEL. AUG.
P. MAX. TR. P
PC. IIII. C.
II.
P. P. ABRAC.
M. P.
XXVII
Diz o sr. Padre
Martins Capela (1), que, com a competência do seu saber e com o amor de
dedicado filho da serra, cuidadosamente, estudou o troço da geira romana de Braga,
entrando pela Galiza, que aquela inscrição está evidentemente viciada por
longínqua e desconhecida renovação, parecendo-lhe que ela seria, provavelmente assim:
IMP. CAES
C. MESS. Q. TRA
IANO. DECIO.
INVICTO
PIO. FEL. AUG.
PONT. MAX. TR. POT.
PROC. IIII. COS. II
P. P. A BRAC.
AUG.
M. P.
XXVII
O cruzeiro
de Covide é, como o do Campo, um monolito de granito da região, servindo de
peanha a uma cruz.
Este marco foi
porem invertido, tendo as letras para baixo, e está bastante enterrado, mal se
podendo reconstituir a sua epigrafe, que o sr. Padre Capela recolheu assim:
... ....
. ...AN. DECIO
..V...O PIO F AUG
.... MAX T P
...COS IIII
... ..P .
..RAC MIL.
XXV
Cruzeiro de S. João do Campo |
Alminhas
Também elas,
como os cruzeiros, têm perdido nos velhos tempos idos a sua origem, vindo pelas
idades fora a atestar às gerações sucessivas uma fé que se não apaga.
Não podia, por
isso a Serra, onde ainda hoje, mais do que em qualquer outra parte, se mantém
vivo e puro o espírito religioso, fugir ao sentimento de amor do próximo e ao sentimento
de respeito e de piedade que se traduz nessas alminhas tão evocadoras e tão simples,
que aqui e ali, pelos caminhos, fazem parar o viandante, pedindo-lhe uns
instantes de recolhimento e de oração pelas almas dos que morreram.
A cada região
correspondem, por certo, tipos dominantes e adaptados de alminhas, interessante
sendo, por isso, o estudo comparativo e completo de todas elas, pelo que e como
elemento para quem um dia faça esse estudo na Serra minhota, terra de granito,
de castanheiros e de carvalhos, reproduzo aqui as chamadas alminhas da
Candorca, perto de Rio Caldo, nas abas da serra do Gerês (2).
Não há memória
de quando, nem por quem, seriam feitas e colocadas no seu sítio aquelas
alminhas, nicho cavado na torada do tronco de um velho e carcomido castanheiro,
de pinturas já esbatidas pelo tempo, mas deixando ainda assim, apesar do seu
abandono actual, perceber as figuras que o habitam.
Da Candorca
lhe chamam, porque assim se diz na região do individuo velho, roído pelos anos.
Castanheiro candorco, ou candorçoso,
minado no interior e ainda dando fruto longos anos, árvore candorca.
A torada mede
cerca de 1,70m de altura, sendo de 1,20m o seu diâmetro interior e encontra-se
colocada sobre a parede de vedação de propriedade particular, à beira do caminho
que do local denominado Ribeiro da Adega conduz à igreja paroquial do
Rio Caldo, num sítio pitoresco e aprazível, rodeado de amieiros e outras
árvores.
É coberta de
telha portuguesa e tem, como se vê, ao alto o Cristo crucificado, ladeado
pelas imagens de Santo António e Nossa Senhora do Rosário.
Em baixo S.
Miguel com a balança, pesando as almas, ou as suas boas e más ações em vida
e ainda as labaredas do purgatório, com várias almas em expiação dos seus
pecados, ficando na base de tudo a respectiva caixa das esmolas, hoje
desconjuntada e sem préstimo, pelo abandono em que o nicho, que em dias mais
felizes teria o seu esplendor, foi de há tempos lançado, talvez pelo lugar
isolado e solitário em que se encontra.
Diz a tradição
local, que, aliás, nada pode confirmar, que estas alminhas foram mandadas fazer
por uma Teresa da Granja, que da sua bouça levara o castanheiro.
Mulher fora ela
de decisão e energia, que em tempos de agitadas lutas políticas se evidenciara
por aqueles sítios, indo amiudadas vezes ao Porto, o que então seria acto de
aventurado heroísmo.
O certo é,
porém, que ainda hoje o terreno onde as alminhas se exibem, está na posse de
uma família Granjas.
E porque tudo isto é cheio de curiosidade e estas alminhas são de uma arquitetura original, que prende pela sua admirável adaptação à alma simples do serrano e à feição agrícola da região, não quisemos deixar de arquivar aqui a sua reprodução.
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Cruzeiro de Covide |
Sintra - Julho
- Outubro de 1922.
Tude M. de
Sousa.
(1) Miliários do Conventus Bracaraugustanus
em Portugal (Porto - 1895).
(2) Muito instrutivo e merecedor de ser
seguido é sobre este assunto o trabalho As Alminhas do sr. dr. Vergílio
Correia no livro Etnografia Artística (1916) relativo ao distrito de
Coimbra.
Fonte: "Terra Portuguesa - Revista Ilustrada de Arqueologia Artística e Etnografia" - nº 35-36 - Dezembro de 1992