O andador das almas - Tipos de Lisboa
O andador das almas |
De entre
os tipos que Lisboa tem visto desaparecer do seu seio, pode-se bem notar o andador das almas, que muito raro se
encontra hoje.
O último
exemplar que conhecemos desta espécie foi na igreja dos Mártires, e esse
exemplar era muito semelhante ao tipo que Manuel
de Macedo, num momento de bom humor, desenhou despretensiosamente no seu álbum,
de que nos forneceu uma cópia.
Nós
saboreamos essa cópia como bom tipo cómico que é, e como documento arqueológico
digno de se arquivar, para que enfim se não percam completamente as tradições
dos costumes portugueses, costumes que são o característico de um povo, a
expressão de uma época que passou.
Andador das almas foi
ofício rendoso, mas os tempos principiaram a correr-lhe mal, desde que os
devotos foram desaparecendo, e que na escudela já não se juntava uma aluvião de
moedas de cinco réis, ali depositadas em cumprimento de promessas fáceis de
fazer e económicas de cumprir.
Sim, é
preciso que se saiba que havia um costume muito inveterado de prometer cinco
réis às almas em troco de qualquer bugiaria.
- Porque
se perdia o novelo com que se estava a costurar,
- porque
se sumia a caixa de rapé de enfronhada
tabaqueira,
- porque
os feijões não se cozia bem,
- porque o
dia estava de chuva e se precisava de bom tempo para sair à rua,
- porque o
candeeiro de três bicos não dava boa luz por mais que se espevitasse,
e, enfim,
por um nunca acabar de insignificâncias, que eram outros tantos motivos para
incomodar as pobres almas que não tinham mãos a medir em a atender a tantos
rogos.
O próprio andador era dos mais pedinchões, porque
do bom peditório também a sua alma partilhava, e melhor que a sua alma, o seu
corpo que sempre se regalaria com melhor refeição acompanhada de boa pinga.
A matadela
do bicho, essa era certa, como as estrelas no céu e antes do primeiro toque da
missa.
Depois,
pelo dia adiante, ia-se aquecendo o forno à medida que as esmolas iam crescendo
na escudela.
O mister de
andador era quase sempre
desempenhado por velhos; homens de ofício, que a folhas tantas, largavam a
ferramenta pesada, para a trocarem pelo balandrau e pela escudela, que sempre
era mais leve, e que nem por isso rendia menos que o ofício.
Usavam
capa encarnada com murça verde, e para resguardarem a cabeça do frio e do sol,
traziam um barretinho de seda preta, e alguns de seda verde, para não destoarem
da cor da capa.
À força de
pedirem para as almas, as almas não chamavam por eles, e deixavam-nos por cá muitos
anos, arrastando a velhice que ia por igual consumindo-lhe o corpo e o
balandrau, tornando-os verdadeiros seres pré-históricos.
O andador das almas começou a rarear
quando principiaram a desaparecer as mulheres de capote e lenço.
Se ainda
há algum andador das almas por
Lisboa, é decerto tão raro como o capote e lenço, e o último destes trastes
deverá fatalmente ser a mortalha do último dos andadores das almas, mesmo
porque o balandrau nem já para isso lhe poderá servir.
Fonte:
"Occidente", nº 259 - 1 de Março de 1886